Onde a casa fala

bem-vindo, pode reparar na bagunça.

Zero

Primeiro peço calma. Um pouco de diligência. Qualquer dose de equilíbrio agora será bem vindo. Existe uma linha muito fina que separa o passado, o presente e o futuro. Como uma parede dessas de apartamento em que se ouve tudo do outro lado, onde escuto ecos antecedentes. A gente leva, ignora, se arrasta pela vida com uma bagagem cheia de qualquer-coisa. Hora ou outra o inconsciente chama. Peço-lhe então, licença poetica. Algumas coisas precisamos matar bem matadas; até que se esvaia todo e qualquer choramingo agudo escondido entre fronhas e lençóis. Dado a necessidade, aqui então, começo a traçar um novo significado pra tudo. Ainda sinto um perfume que possui um retorno olfativo muito semelhante. Tudo igual de um jeito diferente. Bem clichê. Divirta-se.

– Cira Marupiara

Precisar

Esquecer que neste peito
bate um coração
não evitar sentir

Mas procurar um jeito
em que a poesia
não revele meus devaneios
meus defeitos

A alma que grita tanto
precisa de silêncio

– Fantasma

Um

Como sempre fui alguém que sente tanto, Procurei inúmeros porquês, pra cada passo, acaso encontrado, para cada estrago. Até que em dado momento, tudo isso se dissipou. Tanta palavra ao vento, ponto final forçado que estancou. Como poderia eu, que sempre escrevi com sangue ou lágrimas, ódio ou ternura, tiraria de mim, algo que tornei segredo? Não tem como dizer ao poeta, idealizador romântico do movimento da vida, que ele deve tapar o olho esquerdo e enxergar só com o direito, escrever só na sombra, em dias ímpares e evitar o outono. Transformei sagrado um lapso de tempo. Já que por costume vulgarizei meus versos e cada palavra bendita ou maldita, não examinei se havia sentido ou nexo. Escrevi tanto de dores e rancores que não poderia ser autora de um ponto final tão ambíguo. Algo que se perdeu pelo caminho, como pode a inspiração existir por si mesma? Procurando a parte em que se abrirá o peito e estraçalhará, mostra que tudo é ridículo mesmo e as vezes a gente precisa abrir a caixa torácica com as mãos e lavar o coração com álcool 70. Outro dia estava rindo, prozeando e decidindo não mais aceitar o tapa olho auto imposto porque sempre, sempre, sempre, escrever nesse tom, é sangrar em público. Não há como escapar. Entre o véu do esquecimento e o presente tem uma lacuna latente - esse espaço precisa ser preenchido. Nessa mesma conversa, percebo que não posso dizer que nada me foi roubado. Nada me foi tirado e muito menos esquecido. Enquanto em meus olhos houverem montanhas, haverá um significado em mim que me transbordará. Preciso extrair isso como quem faz hemodiálise artistico-melancolico-emocional. É um espaço demolido no braço, deixo agora, tomar sua forma natural e aceitar que um dia, seja só uma mata tomada por todas as plantas nativas, sem presença alguma de espécie invasora despretensiosa. Que a gente se proteja de si mesmo. Entre essas falhas e buracos de minhoca, chegou a hora de martirizar isso, exorcizar em linhas. Precisei reconstituir o cadáver dessa psicose efêmera já tão apodrecida, para preparar seu velorio. Visto-lhe a melhor beca, precisando dar ponto sem dar nó, costurar numa costura infinita para que só, encontre forma para que tudo se cale de uma vez por todas. Quero ansiar novas buscas e reaproveitar espaços, reciclar o que silenciei e deixar ir com o vento. Agora, estamos festejando o luto. Vamos mudar a visão tão ocidentalizada de morte e reinventar ela através da vida. Não morremos baby. Seguimos em frente.

– Cira Marupiara

Mulher bicho, bicho-mulher

Eu sou mulher-bicho
ou seria melhor; bicho mulher?
é confuso o labirinto do Eu
mas inegável o ciclo

Observo os trabalhos entre os dedos
meus passos que revelam segredos
meus silêncios de grandes enredos

A parte animal do meu âmago
é o lado que menos estranho
mas ainda é o que espanta rebanho

A parte mulher não sabe seu tamanho
uma hora é verbo outra é estação
ser plena ou ser pequena
outono ou verão

Lua que guia por ilusão
sendo subterfúgio da criação
se somos o que não existe

Luz que brilha triste
buscando tanto de si
ouro prata ou marfim
caçando sua própria carne até o fim

Da onde vem a vida
se não de mim;
se não de nós

Viver; vida;
hora substantivo, hora verbo
tudo que define o ser
começa na mulher.

– Vitória Novoa

Zero

Faz algumas luas em que estou tomando um coquetel de ervas que a curandeira mandou. percebo que alguns dias não consigo enxergar o mundo ao meu redor. Alice, minha gata preta, já reclamou que não estou lhe cumprimentando quando chego. Passo reto como se os compromissos fossem mais importantes do que estar presente em estado físico. Me perco nos meus pensamentos e percebo que há anos que não entendo quem sou. Nos últimos 6 meses já não sei quem eu amo ou quem já me amou. Faço uma bagunça absurda, como se minha vida fosse meu jardim em dia de chuva, quando alaga e o barro fica embaixo das unhas. Fui tomar um chá logo ali, senti que o tempo parou por alguns segundos. Como se houvesse alguma clareza nessa mente louca embriagada. Acho que alguém entrou no ambiente, ou talvez esteja enganada. Será que deveria mesmo seguir tomando os coquetéis da curandeira? Sinto que essas ervas me aceleram, me dão tremedeira. Mal consigo focar onde vou me dedicar, pra onde olhar, o que exatamente pensar. Por um lado, consigo realizar todas as minhas tarefas como antes não conseguia. Mas não sei dizer quem sou ainda. E a pessoa que entrou no recinto, quem é? Joaquim, Leonardo e Roberto pareceram obcecados. Achei besteira, esses homens são tão admirados. Perguntou se queiram doce, todos aceitaram, como crianças ansiosas. Fico desconfiada e dou uma ignorada. Entendo o choque de Leonardo, tantos anos trabalhando com caramelo, mas os outros? Que besteira. Realmente homens se encantam com qualquer bobeira. Pego meu tabaco, entro na minha mente e esqueço do espaço. Não preciso raciocinar pra estar presente. Esses meninos são patéticos, mas são só garotos. Observo a fumaça do meu cigarro em seu movimento cinético. Devo ter soltado algumas palavras ao vento, mas agora não lembro.

– Lenora Blackthorn